Susan Sontag deitada

Lindo o texto de José Castello em seu blog no jornal O Globo sobre a entrevista de Susan Sontag a Jonathan Cott:

“Minha tendência é primeiro escrever rascunhos deitada na cama, esticada”, revelou a escritora Susan Sontag (1933-2004) na longa entrevista que deu a Jonatham Cott, da revista Rolling Stone, no distante ano de 1979. Quase quarenta anos depois, a íntegra da conversa é lançada enfim no Brasil pela editora Autêntica, com tradução de Rogério Bettoni. “Depois, quando já tenho algo para datilografar, vou para a mesa, sento-me numa cadeira de madeira e faço todo o resto na máquina de escrever”, ela continua.

É curioso: para que as primeiras idéias fluam e os primeiros rascunhos se formem, Sontag precisava estar deitada, em posição de completo relaxamento, quase que em estadode desproteção. Só assim, em absoluta entrega às palavras, seus livros começavam a brotar. Mas depois, uma vez recolhidas as primeiras anotações, ela precisava inverter a posição. Já acomodada em uma cadeira _ “de madeira”, enfatiza _, em posição de mais domínio e consciência, punha-se a datilografar os textos, isto é, começava a ordená-los, a organizá-los, a fazer suas escolhas definitivas.

A revelação de Sontag confirma, com ênfase, a existência de uma relação secreta _ mas, ao mesmo tempo, explícita _ entre literatura e corpo. É com o corpo, também, que um escritor escreve. É de sua postura, de sua posição, do maior ou menor controle que tem sobre seus moviemntos, que ele tira sua escrita. O repórter Cott confessa a Sontag que ele prefere escrever todo o tempo “numa cadeira bem dura e cheia de coisas espalhadas ao redor”. Será que essa posição mais “objetiva” promove, com mais eficiência, o aparecimento do texto jornalístico _ ele também mais objetivo e “duro”?

Escrevo meus textos jornalísticos, quase sempre, em meu escritório, acomodado em minha cadeira acolchoada, mas retilínea. Contudo, há muitos anos prefiro trabalhar nas primeiras versões de meus livros à mão, em cadernos de capa dura _ como se a capa, mais resistente, viesse para sustentar a leveza da escrita. O que Sontag diria se eu tivesse tido a chance de ocupar o lugar de Cott e lhe fazer essa pequena confissão? O que ela realmente significa, de fato, nunca saberei.

“Você não acha que escreveria de maneira diferente se estivesse nu enrolado em veludo?”, Sontag provoca seu entrevistador. Rememora, então, algumas lendas da história da intimidade literária. Que Goethe _ “ou talvez Schiller”, sua memória falha _ só gostava de escrever com os pés metidos em uma vasilha de água quente. “E Wagner, que só compunha vestido com robes de seda e perfume e insenso no quarto”. A lembrança de Wagner me leva a pensar se o escritor não precisa, ele também, transformar-se em um personagem para conseguir escrever. Se não há, no ato da escrita, uma espécie de encenação. Que, em consequência, contamina não só o escritor, mas o próprio narrador. Se a representação não começa no papel, mas antes dele, ou fora dele.

Admite Susan Sontag, ao contrário, que as roupas não influem em sua escrita. Estava sempre de jeans, com um pulôver velhor, calçava tênis, e era assim mesmo que escrevia. Não precisava de um figurino especial, não precisava se travestir para escrever. Animada, recorda ainda de Vladimir Nabokov que só escrevia de pé, diante de um atril (estante de madeira, com apoio reclinado para os livros, usada originalmente nas igrejas). Em vez de cadernos, ele trabalhava apenas em pequenas fichas _ como um burocrata, ou um detetive. Era nessa posição de interrogatório que Nabokov arrancava de si mesmo suas “confissões” literárias.

Ainda pensando em Nabokov, Sontag reflete: “Não consigo me imaginar escrevendo de pé. Mas, nesse sentido, acho que o corpo pode mudar”. Essas mudanças físicas, por certo, dependem de outro tipo de mudança: a da relação íntima entre um escritor e seus escritos. Cada novo caminho para a imaginação, uma nova postura _ é possível pensar. Contudo, também nesse aspecto não existem regras. A verdade é que, para um escritor, seu corpo é tão indecifrável, é um mistério tão fugidio quanto sua ficção.

Publicado em: http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/sontag-deitada.html

ERA DE PEIXES ou “vertigem do acúmulo” segundo Umberto Eco

“As fotocópias são um instrumento indispensável, seja para que você conserve um texto já lido na biblioteca, seja para que leve para casa algo que ainda não leu. Mas às vezes as fotocópias funcionam como álibi. Alguém leva para casa centenas de páginas fotocopiadas e a ação manual que exerceu sobre o livro lhe dá a impressão de possuí-lo. E a posse exime da leitura. Isso acontece a muita gente. Uma espécie de vertigem do acúmulo, um neocapitalismo da informação.”
(Umberto Eco, “Como se faz uma tese”. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. 19ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 95)

devoradores de sombras

tradução boa é aquela que me tira do lugar; me faz mexer na cadeira e achar uma nova posição a cada virada de página; me tira da zona de conforto e me lança na pesquisa, no estudo, no aprofundamento. tradução boa é aquela que impõe dificuldades próprias e quase sempre inéditas; é aquela que a gente quer que todo mundo leia.

eis que acaba de sair “devoradores de sombras”, do jornalista richard lloyd parry, pela Três Estrelas. a edição, de extremo cuidado e perspicácia, é do Bruno Zeni e do Alcino Leite Neto. o livro conta a história de lucy blackman, jovem britânica assassinada no japão em 2000, e de seu algoz.

foi eleito por diversos veículos como um dos melhores de 2012 e entrou para outras várias listas entre os dez melhores livros de jornalismo literário da história. sou grato pelo trabalho e por ter aprendido mais uma vez que as vítimas de crimes brutais também têm um papel fundamental: elas morrem para que algo mude. e no caso de lucy blackman, esse papel fez muita diferença.

devoradores

Presença

… como é diferente ver e trabalhar em outro lugar; você vê e pensa: mais tarde –. Aqui é quase o mesmo. Você volta: isto não é nada espantoso, nada notável, nada estranho: não é sequer um momento festivo; pois este já seria uma interrupção. Isto aqui, porém, toma você e prossegue com você, e segue assim em direção ao tudo, no meio e através de tudo, do ínfimo e do grande. Tudo o que foi ordena-se de outro modo, alinha-se, como se alguém estivesse ali comandando, e o presente está com toda a insistência presente, como que de joelhos rezando por você.
— Rainer Maria Rilke, 3 de junho de 1907, em carta para a esposa Clara.
Cartas sobre Cézanne. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, 3ª ed., p. 23.

O dinamarquês Lars Husum e seu amigo “Jesus Cristo”

Foi com uma alegria imensa que aceitei o convite, no início do ano, para traduzir “Meu amigo Jesus Cristo”, do dinamarquês Lars Husum. Sempre tive especial interesse pela cultura e literatura escandinava, e começara a aprender sueco pouco antes do convite. A tradução, autorizada pelo autor, seria feita a partir do inglês, tendo o dinamarquês como suporte. Acaba de sair pela Editora Gutemberg, do Grupo Autêntica, aqui.

Lars HusumNão nego que costumava olhar torto para traduções indiretas, principalmente de obras mais destacadas como esta. Mas a tranquilidade do autor em lidar com o assunto e sua disponibilidade para esclarecer quaisquer pontos foi uma motivação. Além disso, o conhecimento gramatical que eu já tinha do sueco, língua bastante aparentada do dinamarquês, me permitiria descobrir arranjos estruturais importantes para entender o estilo de escrita, como inversões, corruptelas e ritmo. Além do original e da tradução inglesa (que peca em questões de clareza e contém diversos saltos), contei também com o suporte da edição espanhola (muito bem feita), da italiana (muito simplificadora) e, em alguns casos, da francesa.

Lars Husum tem um estilo de escrita bem particular. “Meu amigo Jesus Cristo” é seu primeiro livro – o livro de estreia mais vendido de um dinamarquês. Sua linguagem é contemporânea, cheia de referências à cultura pop. A experiência dele com a escrita começa como roteirista de TV e teatro, o que talvez explique suas frases sempre curtas e diretas. Para minha surpresa, ainda na primeira parte da narrativa, descubro que uma das personagens ouve Suede, uma das minhas bandas inglesas prediletas. Não está no livro, mas o disco que ela escuta é o “Dog Man Star”, de 1994, o segundo da banda. As canções “New generation” e “We are the pigs” se tornaram trilha obrigatória da tradução, além dos primeiros discos de PJ Harvey. Foi com Suede que comecei a dar som ao texto.

Participar do universo do autor durante uma tradução é prática obrigatória para um bom resultado. Usei o Street View do Google para percorrer as ruas de Tarm, cidadezinha onde se dá a narrativa, bem como os bairros de Copenhague (Nørrebro, Vesterbro) onde Nikolaj se instala; assim comecei a dar cor ao texto e entender a realidade na narrativa. Algumas conversas pontuais que tive com o Lars contribuíram bastante para entender até que ponto eu poderia estender a elasticidade de seu trato com a língua.

Tarm, Dinamarca
A principal rua de Tarm, Dinamarca, uma das cidades da narrativa.
Tarm, Dinamarca
Entrada para a Poppelvej, em Tarm.
Copenhague
Rantzausgade, rua do bairro Nørrebro, em Copenhague.
Copenhague
Cemitério de Vestre, em Copenhague.
Copenhague
Praça Sankt Hans Torv, em Copenhague, vista do café Funke.

 

O dinamarquês é uma língua dura, quase gutural e muito objetiva. A narrativa de “Meu amigo Jesus Cristo” é feita toda no presente, em primeira pessoa, e com frases curtas. Não admira que o autor tenha assumido que a linguagem verbal do personagem é pobre; a escolha de palavras simples seria um aspecto importante na tradução. O passado e o futuro são usados em momentos pontuais, e minha atenção teve de ser redobrada nesse ponto – naturalmente me vi tendencioso a narrar eventos passados como uma lembrança, não como uma atuação presente.

O uso de palavrões foi um caso à parte. Pensei bastante antes de optar por “buceta” e “bater punheta”, por exemplo, ciente de que não seria um exagero para “fisse” e “onanere”, palavras traduzidas em inglês por “cunt” e “wank”. Nesse, e em vários outros aspectos, as conversas com o autor foram um privilégio.

E privilégio foi poder fechar a tradução com uma entrevista. Lars fala sobre seu processo de criação, o sucesso do livro no mundo todo, sua relação com a literatura. Certeza de que você, caro leitor, vai correndo para a livraria depois de ler essa conversa.

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Seu primeiro romance, “Meu amigo Jesus Cristo”, foi traduzido para doze línguas, incluindo o português. Como é para você ser lido por culturas tão diferentes?

Uma psicanalista me disse ser a melhor descrição que ela já leu de uma psicose na juventude.Algo muito louco, na verdade. Jamais aconteceu com um romance de estreia escrito em dinamarquês. É uma língua pequena, então poucas pessoas fora da Dinamarca conseguem ler no original, e por isso a tradução é complicada. A experiência está sendo maravilhosa, principalmente porque eu não esperava por isso. Não se trata exatamente de um best-seller típico. É violento demais, estranho demais, e Nikolaj é desagradável em muitos momentos; quando escrevi o livro, não sabia se alguma editora se interessaria. Por sorte, a Gyldendal se interessou, que é a maior editora da Dinamarca, e em seguida vieram as editoras da Noruega e da Suécia. Só isso já foi bem mais do que eu esperava, mas um editor sueco que mora na França também leu e adorou, daí as coisas começaram a acontecer.

O que há de mais interessante em ser traduzido é perceber a diferença da recepção do livro. Na Inglaterra, todas as resenhas se concentraram no humor. É um livro engraçado. Mas em outros países, o humor de alguma forma foi silenciado pelo fato de ser um livro muito trágico. Uma psicanalista num festival de literatura na França me disse ser a melhor descrição que ela já leu de uma psicose na juventude: um rapaz que perde a cabeça e se volta para a religião.

Algumas pessoas leram o livro quase como um cartum ou um conto de fadas moderno (de um jeito bom, e as duas coisas me influenciam, meio que um Jesus como super-herói). Outras o interpretaram como uma história social bem realista. Acho que ele é tudo isso e muito mais. É uma mistura de comédia, tragédia, farsa, melodrama, romance, jornalismo, roteiro de cinema, cartum. Muitas vezes é engraçado no início de uma frase e trágico no fim, e como é uma escrita aberta, é interessante perceber em quais elementos as diferentes culturas vão prestar atenção.

Você começou a carreira trabalhando como escritor na Zentropa, a produtora de cinema do Lars Von Trier. Você acredita que sua experiência como roteirista para televisão e teatro influenciou sua escrita como romancista?

Trabalhei seis anos para a Zentropa, mas era para um ramo da empresa que tinha pouco a ver com os filmes da produtora. Eles costumavam fazer jogos cooperativos (e muito chatos, por sinal, como jogos de tabuleiro sobre segurança no mar em navios cargueiros). Não me pergunte por que uma empresa de cinema como a Zentropa tinha um ramo desse tipo. Mas como eu era escritor em tempo integral, eu transitava entre ficção, filmes e teatro. Tive duas peças produzidas e estou escrevendo agora um roteiro para a Zentropa baseado na minha última peça.

Então a resposta é sim, o teatro e o cinema me influenciaram bastante. Seria estranho se não tivessem influenciado. Não tenho o intuito de dar ao romance a sensação de estar lendo um filme, mas não me importa muito de onde vem a inspiração para a história, o tom ou o estilo. Tudo pode dar certo.

Vários críticos disseram que seu romance se assemelha bastante a um filme do Dogma95. Você acha que seu estilo guarda similaridades com esse movimento, ou que você foi influenciado pelo Dogma95, talvez por ter trabalhado com Lars von Trier?

Duvido que Lars soubesse quem eu era na época em que trabalhei com ele. E não, sinceramente, não pensei em Dogma enquanto escrevia. Gosto muito da obra de Lars von Trier: para mim, ele é um dos diretores mais interessantes e descompromissados do mundo; talvez, assim como acontece com todas as outras coisas de que gosto, eu viva com essa influência no fundo da mente.

Li que você escreveu a primeira comédia em esperanto. Você gosta de conhecer e estudar outras línguas? Como você lida com sua literatura traduzida?

Trabalhei com um grupo de arte na Dinamarca. Escrevi em dinamarquês e eles traduziram para o esperanto. Não posso afirmar com certeza que tenha sido a primeira sitcom em esperanto, mas foi classificada dessa forma.

Sobre línguas estrangeiras, consigo entender minhas traduções para o sueco e norueguês tranquilamente, porque as línguas escandinavas são mais ou menos a mesma língua. São dialetos. Sou mais ou menos fluente em inglês, mas quanto às outras traduções, preciso confiar no tradutor; no meu caso, acho que são todos bastante confiáveis, pois preferem trabalhar com algo de que gostam, são sérios e dão tudo de si para manter o tom do livro. Mas em uns dois países, tive a sensação de que as editoras não tiveram a menor ideia do que compraram! E isso a gente vê na capa: em uma das traduções, quem olha a capa tem a sensação de que escrevi “O exorcista”.

Meu amigo Jesus Cristo
Capas das edições de “Meu amigo Jesus Cristo” lançadas até agora.

Fale um pouco de sua relação com a religiosidade. Como você teve a ideia de transformar um motoqueiro barbudo e cabeludo em Jesus Cristo? Ou será que o personagem não é um motoqueiro?

Não sou religioso, mas tentei escrever um romance que proporcionasse uma experiência de leitura boa para os dois públicos: religioso e não religioso. Na verdade, deixo em aberto se o personagem que afirma ser Jesus é uma alucinação de Nikolaj ou é de fato um motoqueiro maluco. Cabe ao leitor decidir. A maioria dos leitores, pelo menos na Dinamarca, parece interpretar como se estivesse tudo na cabeça de Nikolaj – a história de uma psicose, mas também fui contatado por uma série de padres ou pastores elogiando o livro. Alguns chegaram a usá-lo em sermões, o que soa bem estranho, porque o meu Jesus bate nas pessoas, sua e bebe cerveja.

A Dinamarca tem um aspecto estranho: a maioria das pessoas diz não ser religiosa, mas continua fazendo parte da igreja. Podemos nunca frequentar a igreja, mas somos todos batizados na Folkekirken (Igreja da Dinamarca). Você pode deixar de ser membro, mas até quem se diz ateu não faz isso. Então dizemos que não acreditamos em Deus, mas a religião continua sendo uma coisa importante.

Mas, retomando, eu não revelo no romance que Jesus é motoqueiro, mas é assim que as pessoas têm interpretado em todos os países. Nikolaj é um rapaz que usa a violência como linguagem justaente por ter uma linguagem verbal muito pobre; ele só ouve Jesus, bem como outras pessoas, quando é intimidado fisicamente.

Seu estilo de escrita permite diversas interpretações da narrativa; quer dizer, muita coisa permanece em aberto. Para você, a literatura se constrói num diálogo constante entre escritor e leitor? O que significa literatura para você?

A frustração é um elemento importan- tíssimo na literatura.Acho que já respondi essa pergunta, mas complementando: não gosto de livros fechados, que não me permitem imaginar nada em cima da história. Detesto fechar um livro e perceber que tudo me foi dito. Sei que pode ser um estilo frustrante se o leitor gosta de ter certeza de tudo, mas a frustração é um elemento importantíssimo na literatura.

Lars HusumLi na sua biografia que você era líder de uma banda de electropunk chamada Phase 3. Quando comecei a buscar algumas músicas para ouvir, descobri que isso foi uma brincadeira que você fez consigo mesmo na Wikipédia. É isso mesmo? Então quer dizer que você também não é campeão de judô? E também não tem um programa de rádio?

O programa é verdade. Eu tive um programa semanal na rádio, em que eu falava sobre diversas coisas, mas acabei me cansando de ter de falar toda semana das minhas opiniões sobre algo novo. E também participei de um programa numa estação de rádio nacional em que falei sobre meu processo de escrita.

As outras coisas são mentiras brancas. Não sou líder de nenhuma banda de electropunk, tampouco lutador de judô. Não sei cantar e pratiquei judô lá pelos 8, 10 anos de idade, mas é impressionante a quantidade de gente, inclusive profissionais, que acreditam nisso. E continua lá, na minha biografia.

A primeira coisa que fiz quando comecei a traduzir seu livro foi procurar Tarm no Google Street View. E comecei a perceber que quase todos os lugares e estabelecimentos de Tarm que você menciona no livro, e também de Copenhague, realmente existem. Você acha que esse confronto entre realidade e ficção é uma característica forte de sua obra? Por que você escolheu Tarm?

Tarm é a cidadezinha rural onde eu cresci. Na verdade é uma palavra intraduzível, pois Tarm, em dinamarquês, é o nome da cidade, mas também significa “intestino”. Então o nome da cidade quer dizer basicamente que Nikolaj sente como se estivesse mudando para a merda do mundo, além de representar uma mudança de estado de espírito. Do predominantemente trágico para o predominantemente cômico.

E sim, eu tentei deixar essa linha entre ficção e realidade um tanto indistinta. Não só usando o nome verdadeiro das ruas, mas também usando artigos, imagens (a foto de Nikolaj na verdade é minha) e meu próprio número de telefone no romance. Era para ser um segredo a princípio, mas como mencionei esse fato quando saiu a primeira resenha, no dia de lançamento do livro eu recebi 300 telefonemas de estranhos. E como eu uso diversos elementos da minha vida no livro, muita gente me pergunta se é uma autobiografia. Eu costumo dizer que não, o que obviamente não é uma verdade absoluta.

Fale-me um pouco da sua experiência com o cinema. A produtora Nimbus vai adaptar o romance. Você sabe se já escolheram um diretor? Você está trabalhando com eles no filme, e tem ideia de quando será lançado?

Não estou envolvido com a produção, o que considero ser uma atitude inteligente da Nimbus, pois para mim seria muito difícil cortar a história e transformá-la numa de cinema. Eles já estão trabalhando no roteiro há algum tempo, mas não faço ideia de quando vai ficar pronto.

Do que trata seu novo livro, “Jeg er en haer” [Eu sou um exército]? Qual a diferença na reação do público aos dois trabalhos? Será traduzido?

Provavelmente não. Trata-se de um trabalho fundamentalmente diferente de “Meu amigo Jesus Cristo”. A crítica tem dito se tratar do primeiro romance sobre a geração da guerra na Dinamarca. Meu país tem atuado bastante no Iraque e no Afeganistão. E, levando em conta o tamanho de outros países, a Dinamarca é o país que mais perdeu soldados no Afeganistão, meu melhor amigo é capitão do Exército. O romance foi escrito basicamente para o leitor dinamarquês, e como muitos países têm uma história de guerra bem própria, não acho que se interessarão em publicar um romance dinamarquês sobre o assunto. Faz sentido isso: eu acredito realmente que devemos escrever aquilo que temos vontade de escrever. A escrita de um romance leva anos. Ninguém perde tanto tempo com uma coisa se não tem paixão por ela.

Você conhece literatura brasileira?

Li Jorge Amado há muito tempo, mas não acho que conheço tanto assim para dizer alguma coisa sólida.

Acho que seu livro vai ser um grande sucesso no Brasil, e acho que muitos psicanalistas vão gostar de lê-lo. Acho que não posso deixar de te perguntar qual a sua relação com a psicanálise. Você se interessa pelo assunto? Já fez análise?

Na verdade, nunca me envolvi com profissionais da psicanálise, exceto em questões de estudo e pesquisa mesmo; mas tenho amigos bem próximos que fazem análise e tiram um excelente proveito dela.

Lars Husum

Sobre “Ser e Tempo”

“Sempre entendi que Sein und Zeit não pode ser “propriamente” traduzido e, se o for, sua leitura deve-se fazer em edição bilíngue: por mais rigorosa que seja, a tradução limita-se a fazer meras sugestões de uma leitura entre diversas outras relativamente a um original extremamente polissêmico, ao qual o leitor deve ter pronto acesso o tempo todo. Traduz-se para levar à leitura do original.”

Fausto Castilho na “Nota prévia” à sua tradução de Ser e Tempo, de Heidegger, pela editora Vozes, 2012.

István Mészáros, “A obra de Sartre” — esclarecimento

Em 1979, o filósofo húngaro István Mészáros publica The Work of Sartre, volume 1: Search for Freedom, uma análise da obra de Sartre até O ser e o nada. A ideia inicial do autor era completar dali a alguns anos a segunda parte do ensaio, que se chamaria The Challenge of History, tratando das obras da chamada “segunda fase” de Sartre. Em 1991, a Editora Ensaio publica em português a primeira parte, com excelente tradução do sociólogo Lólio Lourenço de Oliveira — A obra de Sartre: busca da liberdade.

Depois de traduzir outro livro de Mészáros, Estrutura social e formas de consciência, vol.2, fui chamado pela Editora Boitempo para traduzir a nova edição do livro sobre Sartre: Meszáros terminara seu projeto inicial e resolvera publicar os dois volumes num só. A Boitempo havia comprado os direitos da tradução publicada pela extinta Editora Ensaio. Eu deveria revisar a tradução do Lólio e traduzir o material novo referente à segunda parte do livro, o que fiz.

Quando os livros chegaram da gráfica, a editora me procurou para comunicar que ocorrera um erro no processo de edição: o nome do professor Lólio não entrou nos créditos. Sugeri que a editora mandasse imprimir uma etiqueta para retificar os exemplares que ainda não haviam saído da gráfica, mas disseram-me ser inviável. Fato é que o professor Lólio aparentemente entendeu o ocorrido, e a editora divulgou o nome dele em todo o material enviado para a imprensa, bem como corrigiu todos os formatos de e-book.

Publico este post como registro de que os créditos de tradução na primeira edição impressa do livro, atribuídos apenas a mim, foi um erro editorial que só chegou ao meu conhecimento depois do livro ter sido impresso.

Em busca de Sartre, vol. 1 – edição original e tradução de Lólio Lourenço de Oliveira pela Editora Ensaio.
Nova edição de “A obra de Sartre” – original pela Monthly Review Press e tradução de Lólio lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni pela Boitempo.

Para uma resenha do livro no Umbigo das Coisas, clique aqui.

 

Como dizer menos que nada

Meu primeiro contato efetivo com a obra de Žižek foi em 2008, quando traduzi um livro de entrevistas com filósofos, organizado por Julian Baggini e Jeremy Stangroom. Das treze conversas compiladas no livro, a fala de Žižek foi a que mais me chamou a atenção. “Deve ser um cara interessante de se traduzir”, pensei, dada a descoberta de suas polêmicas e de sua ligação com a psicanálise – tema que sempre me interessou. Tornei-me leitor de seus livros; anos se passaram até que a Boitempo me chamou para a aventura de traduzir o verdadeiro tratado que é Menos que nada.

Imagine esta cena: um escritório montado em casa, rodeado de livros nas prateleiras; um computador ligado à internet; a solidão: três elementos fundamentais no trabalho da grande maioria dos tradutores que prestam serviço para editoras no país. O tradutor precisa estar só: para dar voz ao outro, trabalha consigo mesmo. E é por dar voz ao outro, dizem, que o tradutor tem de ser invisível, usar do seu poder de dizer na própria língua “quase a mesma coisa” que o outro disse em outra língua.

É a primeira vez que tenho a oportunidade de um contato mais próximo com um autor que traduzo. Foi quase um ano traduzindo Menos que nada, além de outros textos de Žižek – ou seja, presença diária das palavras do autor em minhas leituras, um contato que culminou em uma longa entrevista que pode ser lida aqui. Entendo quando tradutores dizem que estabelecem quase uma relação amorosa com os autores, um casamento ainda que platônico e unilateral. Acompanhar a vida de um autor, tratar a obra dele como um todo, perceber suas mudanças de opinião ao longo da vida, estabelecer com o texto a mesma dialética que o autor estabelece com as próprias ideias: é o que tento fazer quando traduzo Žižek.

Menos que nada não é um livro fácil; se a aparente disparidade de referências de Žižek antes já era tão variada, incluindo estudos culturais, música popular, arte urbana, psicanálise, filosofia grega, cinema, literatura etc. etc., neste livro ela é levada ao extremo: vemos um Žižek que usa Hegel e Marx para falar de Lacan e vice-versa, numa inter-relação que perpassa inclusive a física quântica. Não acredito em traduções que também não procurem dialogar com a mesma amplitude de referências, o que é difícil e nem sempre possível. Pois a tradução talvez seja a leitura mais autêntica possível de um texto, atenta e ao mesmo tempo sublime, que toca e dilacera as estruturas. “Mas seu trabalho é muito mais difícil e admirável que o meu: pois você só é visto quando comete um erro e te apontam o dedo; na tradução, é preciso ser invisível”, disse-me ele no lançamento do livro. Sei que é tarefa quase impossível ser invisível com um autor de tamanha complexidade – mas se é dela que depende uma tradução acertada, faço o possível para sê-lo: quanto menos visível, melhor. Menos que nada.